sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A fragilidade da reportagem do UOL

O site UOL publicou reportagem dizendo que "juristas ouvidos pelo UOL" afirmam que a denúncia do MPF de 14/09 contra o ex-presidente Lula é "frágil, pouco técnica e espetacularizada". Uma boa reportagem certamente conseguiria encontrar juristas com outros pontos de vista. Basta usar o Google para isso. A seguir examinamos a consistência dos argumentos da reportagem.

Mas antes disso, cabe esclarecer que na fase de denúncia não é necessário a apresentação de todos os fatos e indícios conhecidos. Mesmo porque, fatos e indícios só são considerados provas efetivas depois de submetidos ao contraditório.

Depois de aceita a denúncia e instaurada a ação penal é que se começa a real produção de provas, momento em que se estabelece o contraditório e a defesa apresenta as explicações de modo a contraditar a convicção do MP. Isso não quer dizer que o MP possa fazer denúncias apenas baseadas em suposições. O que o MP precisa é apresentar argumentos suficientes para convencer o juiz de que a denúncia deve ser acatada. É natural que o MP guarde algumas "cartas na manga" e ouça antes os argumentos da defesa, para depois contraditá-las com o conjunto de provas. Se a defesa diz a verdade, ela vai ser corroborada pelo conjunto e provas. Se mente, pode ser desmascarada.

Examinemos agora os argumentos dos juristas um por um.

1) Dificuldade de estabelecer o vínculo entre o contrato "A" e "B" da OAS e a propina de Lula

"É muito difícil estabelecer um vínculo do Lula com esse recebimento da propina decorrente de certos e determinados contratos. Na denúncia, em geral, você precisa especificar a origem desse dinheiro, mas como definir que as vantagens recebidas por Lula vieram de um contrato 'A' e não de um contrato 'B'?"

Esse argumento, ainda que mais consistente, lembra um artigo mais antigo do jornalista Jânio de Freitas que disse que não seria possível saber se o dinheiro da propina veio da parte superfaturada dos contratos da Petrobras ou da parte "dentro do preço de mercado".

O inquérito policial aponta a reforma do sítio e do triplex feitas pela OAS eram contabilizados em centros de custos de nomes "Zeca pagodinho 1" e "Zeca pagodinho 2". Quem conhece um pouco de Contabilidade de Custos entende como centros de custos são utilizados para associar contratos (produtos) e custos. Uma das empreiteiras, a Andrade Gutierrez, chegou ao ponto de ter uma conta contábil com o sugestivo nome de "overhead", onde eram registrados os pagamentos das palestras de Lula. A Odebrecht tinha um departamento e um software separado para lidar com essas questões.  Leo Pinheiro em depoimento ao juiz Sérgio Moro [1] sobre propina paga para evitar que a CPI da Petrobras chegou a mencionar a associação dessa propina a centro de custos que mapeavam para contratos da Petrobras. É bem possível que o mesmo aconteça com os centros de custos "Zeca Pagodinho", formal (menos provável) ou informalmente.

2) Falta de provas cabais da propriedade do triplex

"A declaração do procurador Roberson Possobom de que o MPF não tinha "provas cabais" que comprovassem que Lula era, de fato, o proprietário do apartamento no Guarujá, mostra o quanto a denúncia é frágil."


"É incomum (denunciar sem ter provas cabais). Foi uma denúncia heterodoxa (não tradicional). Se a tese do MPF vingar, isso será uma reviravolta no mundo jurídico. Ele (o procurador) diz que não há provas porque se tratava de crime de lavagem de dinheiro. E a ausência de provas vai acabar, segundo ele, comprovando a tese de que houve crime. Isso é uma inversão do princípio e que o ônus da prova é de quem acusa".

O procurador não afirmou que não há provas. Disse que não há provas cabais. Não disse que a ausência de provas comprova a tese que houve crime. O que ele disse é que a ocultação da propriedade é que comprova o crime e a ocultação faz com que não haja  um documento com assinatura da compra.

Uma denúncia pode ser muito contundente sem ter provas cabais. Provas cabais são raras para diversos tipos de crimes. Não devemos confundir ausência de provas cabais com ausência de provas.

Aliás um testemunho é uma prova cabal ou não? Não estamos falando de colaboradores que assinaram um acordo de delação premiada, mas testemunhas que em juízo tem a obrigação de falar a verdade. Pode alguém ser condenado apenas com base em testemunhos, sem "prova cabal"? Sim, claro que pode.

Em um processo o MP apresenta um conjunto de fatos, provas e indícios que fundamentam sua convicção de acusação. A defesa faz o contraditório, apresentando outra explicação para aqueles fatos, outras provas e indícios. O juiz decide qual versão é a verdadeira, mas quase nunca há certeza. O juiz não condena porque tem CERTEZA ABSOLUTA, mas porque não há DÚVIDA RAZOÁVEL sobre a culpa do réu. São coisas bem diferentes. O princípio da inocência não quer dizer que a condenação só acontece em caso de provas cabais.

Aliás as provas e indícios apresentadas pelo MP no caso são bem razoáveis. Espero conseguir escrever um outro post, confrontando as as versões da acusação e da defesa.

3) "Comando" de Lula é ignorado em denúncia

"Se ele chefiou uma organização criminosa, onde está essa segunda parte? Essa é uma falha técnica que a gente pode chamar de violação do princípio da correlação. Aquilo que o Cazuza [diz]: a sua ideia não corresponde aos fatos. Talvez o pensamento tenha sido mais rápido que os fatos a serem descritos"

Talvez o pensamento do jurista tenha sido expresso antes de ler a denúncia, que diz: "Deixa-se de denunciar LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA pelo crime de organização criminosa porque tal fato está em apuração perante o Supremo Tribunal Federal (Inquérito 3989)." 

4) "Espetacularização" da denúncia

"Para Wálter Maierovitch, o nível de espetacularização da denúncia foi sem precedentes. "Nunca vi uma apresentação tão espetacular. Tinha até mestre-de-cerimônias com apresentação de componentes da mesa com nome e sobrenome. Nunca vi isso na minha vida", diz o jurista com mais de 30 anos de carreira".

O seguinte link tem as apresentação de boa parte das conferências da Lava Jato.  O formato de apresentação da mesa é praxe. A operação Lava Jato investe na publicidade dos seus atos, o que é um modelo diferente, mas muito interessante pela relevância do assunto.

A apresentação foi muito similar a que aconteceu quando foi feita a denúncia contra Dirceu.

Concordo que o procurador Deltan Dalagnol foi espetaculoso. Poderia ter sido mais contido. Mas é difícil não concordar que são fortes os indícios de que o Brasil virou uma "propinocracia". Recomendo ao leitor assistir as delações anexadas pelo MP à denúncia, especialmente as de Pedro Corrêa e Delcídio Amaral. Depois me digam se no Brasil temos uma "propinocracia" ou um "presidencialismo de coalizão".

Referências:

[1] Para esse depoimento o foco eram as propinas para evitar que a CPI da Petrobras chegasse a um bom fim. Não se trata de delação, mas testemunho, o que reforça seu valor probatório. A seguir link para as três partes do depoimento: Parte 1 Parte 2 Parte 3.

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