sábado, 28 de abril de 2018

A colaboração premiada de Palocci x Rede Globo

Em mais um post da série "Observatório da Imprensa", examinamos uma reportagem do Programa "Domingo Espetacular" da Rede Record.

Essa semana tivemos o anúncio de que Palocci assinou com a Polícia Federal sua colaboração premiada. Assim que a colaboração foi assinada, uma parte da mídia que "comprou" a versão de que Palocci "delataria" a Globo rapidamente passou a afirmar que essa revelação teria ficado de fora da colaboração.

Previsivelmente, no futuro próximo veremos a colaboração de Palocci ser atacada por uma parte da imprensa com o argumento "por que não delatou a Rede Globo?". E, é claro,  muitos ataques serão feitos ao Ministério Público e a Polícia Federal que "não quiseram ouvir sobre a Rede Globo".

Mas, conforme análise a seguir, a suposta ameaça de Palocci de denunciar a Rede Globo nunca aconteceu.  Por isso, não fiquei admirado quando a suposta deleção que atingiria a Rede Globo "sumiu" da colaboração de Palocci.

O objetivo do post não é defender a Rede Globo, mas mostrar como na imprensa surgem algumas especulações aparentemente sem fundamento.

A especulação teve origem principalmente na reportagem do programa "Domingo Espetacular" (veja aqui) de 16/07/2017 da Rede Record.  Ela inicia dizendo que os poderosos donos da Rede Globo estavam com medo de uma possível delação de Palocci. Após afirmar que Palocci teria insinuado que sua delação poderia atingir a Globo, a reportagem mostra um trecho de seu depoimento a Sérgio Moro sobre empréstimos do BNDES a empresas em falência do ramo de comunicações. Após isso, a reportagem afirma que  em 2002 a Rede Globo teria quase falido. Nessa ocasião ela teria comprado os direitos da Copa do Mundo através de um esquema fraudulento, através de empresas no exterior, sem o pagamento de impostos. Em 2005, já no governo Lula, o escândalo veio a tona e a Globo foi multada pela Receita Federal, em 600 milhões de reais. Anos mais tarde, uma funcionária da Receita Federal teria sumido com o processo quando ele estava pronto para ser enviado ao Ministério Público. Em 2014, a Globo, aproveitando a Lei nº 12.996/2014 (Lei do REFIS) que permitiu o pagamento de débitos tributários com desconto da multas, quitou a dívida, pagando mais de 1 bilhão de reais, mas com descontos de 1 bilhão de reais.

Note que apesar do assunto do depoimento de Palocci ser empréstimos do BNDES a empresas em risco de falência, o escândalo mencionado na reportagem nem toca no nome do BNDES.

Mas o grande problema da reportagem não são as informações sobre o escândalo. O problema é como a reportagem associa o escândalo da Globo ao depoimento de Palocci. A reportagem dá a entender que Palocci teria feito essa insinuação. Mas, na verdade, no trecho do depoimento citado, Palocci está dizendo que nunca atuou junto ao BNDES, a não ser em casos de falência, e mesmo assim em situações legítimas de atuação de um Ministro da Fazenda. O caso principal que ele cita de falência é o da Varig. 

A reportagem faz um corte da fala de Palocci de modo a dar a impressão que o diálogo que tinha a ver com a Varig era exclusivamente sobre a Globo. O corte passa desapercebido porque pouco antes do corte a imagem muda do depoimento para uma imagem externa (uma tomada área, talvez da Rede Globo). Graças ao corte, o expectador da reportagem fica com a impressão que Palocci afirmou textualmente: "A única situação que eu discuti com o BNDES crédito foi em situações de empresas que iriam entrar em falência, que eram empresas de grande porte no Brasil e cuja falência poderia significar uma fila de falências de muita muita repercussão <CORTE> empresas da área de comunicação tiveram problemas sérios nesse período".

Na verdade, o trecho sem cortes do depoimento é: "A única situação que eu discuti com o BNDES crédito foi em situações de empresas que iriam entrar em falência, que eram empresas de grande porte no Brasil e cuja falência poderia significar uma fila de falências de muita  repercussão. Por exemplo, quando nós  assumimos o governo em 2002 isso aconteceu com a Varig, por exemplo. Confesso ao senhor que fiz reuniões pra tentar salvar a Varig inclusive na sala da presidência no Supremo Tribunal Federal. Ou seja, conversamos com BNDES, com toda essas situações eu sim falava ativamente com o BNDES foi o caso principalmente da Varig e de outras empresas da área de comunicação tiveram problemas sérios nesse período, inclusive algumas empresas declarando default nos seus compromissos externos".

Veja o vídeo sem cortes aqui:


Veja o mesmo trecho editado pela reportagem do Domingo Espetacular, observando a sutileza no corte da fala de Palocci:


PS 1:
A primeira especulação sobre a possibilidade de Palocci citar a Rede Globo apareceu em uma pequena nota da Revista VEJA. A nota afirma a "delação" de Palocci teria "um anexo que entra e sai da versão final — sobre questões fiscais da Rede Globo". A notícia é estranha já que não faz sentido um assunto "entrar e sair" da colaboração, já que fato tiraria a credibilidade do colaborador, impedindo que a colaboração fosse aceita.

PS 2:
A Globo de fato enfrentou uma grave crise financeira em 2002, declarando moratória em outubro desse ano. A dívida foi negociada, sendo que a situação da Globo só melhorou a partir de 2006, graças, entre outros mudanças, a venda de parte dos negócios da Globo para o grupo do investidor mexicano Carlos Slim. Um financiamento  pelo BNDES para as redes públicas de televisão foi discutido no Congresso em 2014, mas não foi aprovado.

Há uma polêmica sobre se o BNDES teria financiado a Rede Globo, veja aqui. Apesar da informação desse link ser da própria Globo, acredito ser ela confiável, já que traz uma confirmação do próprio BNDES.

PS 3:
Alguns pontos estranhos, à primeira vista, ds reportagem da Record:

1) ela não identifica os entrevistados e sua função, de modo que não fica claro que órgãos eles representam e os seus currículos;

2) ela assume que o sumiço de um processo físico (no papel) da Receita Federal seria suficiente para impedir que o Ministério Público fosse acionado;

3) ela menciona que a funcionária da Receita que sumiu com o processo saiu da cadeia por um HC. Mas condenações a quatro anos dificilmente são cumpridas inicialmente em regime fechado. 

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